terça-feira, 23 de março de 2010

PAZ E DIREITO: ABORDAGEM DA TEORIA CONTRATUALISTA EM FACE DAS CONSEQUÊNCIAS DO TERREMOTO NO HAITI

A grande catástrofe que assolou o Haiti, no dia 12 de janeiro de 2010, tem revelado, de forma empírica, a importância da aplicação das teses desenvolvidas no início da idade moderna por teóricos contratualistas, bem como em que medida o Direito, como conjunto de regras de conduta, pode alcançar a harmonia nas relações sociais.

Durante semanas após o tremor, aquele país demonstrou claramente o que Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo inglês, queria dizer ao utilizar a expressão "estado de natureza" em sua obra Leviatã (1651).

Diante das ruínas, da falta de alimentos e da ausência do poder estatal materializado, os haitianos se regrediram em poucas horas ao estado onde o homem disputa todas as coisas por direito natural e absoluto.
A presença de saques a lojas, roubos em residências privadas, violência armada, bem como sequestros de pessoas, tornaram-se constantes na vida de milhares de pessoas daquele país. Esse fenômeno traduz a luta pela sobrevivência individual perante a ausência de uma ordem coletiva ou, pelo menos, a deficiência do contrato social ocasionada pela tragédia.

Hobbes parte da convicção de que o ser humano, em tempos primitivos, convivia fora da sociedade, sendo todos os homens iguais e essencialmente egoístas, tendo todos os mesmos direitos naturais e não existindo nenhuma autoridade ou lei. O estado de natureza foi, portanto, uma época de anarquia e violência.

Nicolau Maquiavel (1469-1527), outro contratualista, descreveu que o fundamental em uma nação é que os conflitos originados em seu interior sejam controlados e regulados pelo Estado, pois os homens são "ingratos, volúveis, simulados e dissimulados, fogem dos perigos, são ávidos de ganhar e, enquanto lhes fizeres bem, pertencem inteiramente a ti, te oferecem o sangue, o patrimônio, a vida e os filhos; mas quando precisa deles, revoltam-se" (MAQUIAVEL, 1513).

A Sociedade Civil haitiana mostrou-se, no período pós-tremor, desfacelada, sem aplicação de normas de conduta, com frequente violação da propriedade privada e insegurança na liberdade de ir e vir.

O conceito de Socieade Civil nas teorias contratualistas, sobretudos através das obras de Hobbes e John Locke (1632-1704), é entendido como sinônimo de Estado, contrapondo-se ao "estado de natureza".


Essa socieade seria um estágio mais avançado no qual os indivíduos viveriam após o estabelecimento do contrato social, subordinados a um governo baseado na imposição de leis. Haveria, dessa forma, civilidade nas relações, isto é, respeito pela autonomia individual, baseada na segurança e na confiança entre as pessoas. Essa civilidade requeria regularidade de comportamento, regras de conduta, respeito pela lei e controle da violência.
Apesar das convergências analíticas entre os referidos contratualistas, cumpre salientar que Jean-jaques Rousseau (1712-1778), autor da obra Do contrato Social (1762), abordou o "estado de natureza" de forma relativamente diferente dos outros. Ele afirma que o homem naquele estado, uma época primitiva, vivia feliz, livre e era essencialmente bom; a convivência coletiva é que o tornou escravo, mau e egoísta. Essa visão levou Rousseau a formular o que ficou conhecido futuramente como o mito do "bom selavagem".

Ainda segundo Rousseau, o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou de dizer "isto é meu" e encontrou pessoas suficentemente simples para acreditar nele.

No momento em que a primeira pessoa cerca um pedaço de terra e diz que esse espaço é propriedade dele, surge o ódio e a ganância; e a paz é corrompida, conferindo lugar ao medo e ao ódio mútuo. A sociedade civil seria, portanto, marcada pela desigualdade social e política entre os seus membros. Daí a necessidade de se estabelecer um pacto, um contrato social, que permita construir uma sociedade política, ou seja, um Estado que seja guiado pela "vontade geral".

Essa "vontade geral" aduzida por Rousseau representa a suprema direção da sociedade, é aquela que traduz o que há de comum em todas as vontades individuais, ou seja, o substrato coletivo das consciências. Dessa forma, ela não se confunde com o somatório das vontades individuais.

A "vontade geral" liga-se ao interesse comum, ao passo que a vontade de todos atrela-se ao interesse privado, sendo a soma dos interesses particulares.

Na lição de Rousseau, após a realização do pacto, o dever do Estado é atuar no sentido de evitar o conflito e promover a paz social. Ele salienta, ainda, que para respeitar o contrato social, o Estado deve evitar extremos de pobreza e riqueza, regulando a desigualdade, para promover a igualdade.

De volta à análise concreta das consequências do terremoto do Haiti, pode-se afirmar que as instituições - normas de conduta, leis, base política etc. - daquele Estado não deixaram de existir em virtude da destruição dos elementos físicos, como repartições públicas e prédios de organização privadas, bem como pela morte de agentes públicos responsáveis pela garantia da ordem.

Todavia, há de se considerar que os prejuízos físicos ocorridos foram de tamanha magnitude suficiente para desestruturar a "vontade geral" daquela nação, e abrir espaço para o prevalecimento dos interesses individuais. Em outras palavras, a situação pré-estabelecida de equilíbrio entre o bem comum e os interesses particulares foi desconstituída, passando a realçar estes em detrimento daquele.

Apesar de haver um Direito - na acepção de ordenamento jurídico - estabelecido no Haiti para vingar a harmonia nas relações sociais e, consequentemente, a paz, os indivíduos não viam eficácia das normas perante um contexto no qual o poder estatal estava imobilizado, sem aparelho administrativo para atender a tantas demandas.

Se aquele país, antes da catástrofe, já dependia de ajuda internacional para impor a ordem social, como o apoio do Brasil, muito pior foi após o tremor do dia 12 de janeiro de 2010.

Pois além de afetar as estruturas físicas do aparelho do Estado haitiano, o terremoto também causou danos às organizações que se instalaram no país com o objetivo de promover a paz, como é o caso, além do Brasil, da Organização das Nações Unidas (ONU).

Por tudo exposto, algumas conclusões podem ser extraídas desse acontecimento que marcou a história da humanidade.

A primeira delas é que os indivíduos podem se regredir ao "estado de natureza" hobbesiano devido ao instinto de sobrevivência intrínseco à natureza humana. Eles podem, inconscientemente, atentar contra o pacto do contrato social e retirar da posse do Estado parcela da autonomia e liberdade individual lhe concedidas, prevalecendo os interesses particulares sobre a "vontade geral" ou bem comum.

Ademais, a simples existência de um ordenamento jurídico, ou Direito, não significa que haverá uma aplicação eficaz das normas e subordinação dos indivíduos. A paz não é, portanto, garantida única e exclusivamente pelo Direito. As instituições são de suma importância, sobretudo, para se evitar abusos contra a segurança jurídica. No entato, é preciso mais do que leis, torna-se necessário um equilíbrio interno a cada ser humano entre o interesse particular (desejos materiais, anseios e ambições) e o bem comum, que, como foi descrito anteriormente, não representa o somatório dos interesses particulares.

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