quarta-feira, 24 de março de 2010

Processo civilizador e manutenção da ordem social: há paralelismo entre eles?

“Colocaram numa jaula cinco macacos, uma mesa e, acima desta, um apetitoso cacho de bananas pendurado no teto (acessível apenas àquele que estivesse em cima da mesa). Entretanto, sempre que algum dos macacos subia na mesa para pegar bananas, os outros quatro recebiam um jato d’água fria de alta pressão. Não tardou para eles descobrirem a relação causal entre subir na mesa e pegar bananas e o banho frio, isto é, que pegar bananas produzia como conseqüência banho gelado, dessa forma os macacos que ficavam embaixo passaram a punir com uma bela surra aquele que se aventurasse a subir na mesa. Passadas algumas surras, nenhum deles mais tentava pegar bananas, embora elas estivessem lá disponíveis ao alcance de qualquer um deles.

Quando esse condicionamento (memória) já estava bem estabilizado, começou a segunda fase do experimento: os cientistas substituíram um daqueles cinco macacos e extinguiram os banhos de água fria… O resultado imediato foi que o novo indivíduo foi imediatamente se servir das bananas e, quando desceu da mesa, levou uma grande surra! Embora não houvesse mais banhos, os macacos ainda surravam quem subisse na mesa. Rapidamente esse novo membro do grupo concluiu que as bananas geravam um grande desconforto e abandonou as tentativas (embora nunca tenha visto uma gota de água sequer). Sucessivamente os cientistas passaram a substituir cada um dos outros quatro indivíduos, um por um, do grupo original (que tinham tomado banho frio e que começaram a aplicar as surras). Até que cada novo membro tivesse aprendido a não mais pegar as bananas e também, a surrar aquele que tentasse subir na mesa. Quando finalmente todos foram substituídos, observou-se que os cinco macacos presentes na jaula, ainda que nunca tivessem tomado banho frio, mantinham o hábito de surrar qualquer
um que tentasse pegar as bananas, e por si mesmo, nenhum deles mais arriscava subir na mesa.”

Uma leitura possível do famoso experimento é capaz de reafirmar que a instituição de comportamentos semelhantes tidos como desejáveis para os indivíduos em uma sociedade reflete a existência da coerção social, uma espécie de força exercida sobre esses indivíduos que os impele a se conformarem às regras e padrões estabelecidos coletivamente, os quais antecedem às ações individuais. A sociedade é um todo orgânico, estruturado a partir da sociabilidade e, conseqüentemente, da emergência da consciência coletiva entre as partes que, de modo interdependente, desempenham funções a elas determinadas com vistas à manutenção do todo, reforçando a preponderância da totalidade sobre a soma das suas partes.

As condutas desviantes, recorrentes no seio das sociedades, suscitam questões problemáticas, pois rompem os laços que ligam os membros do grupo entre si e fragilizam os laços que unem o próprio grupo, comprometendo a estabilidade social. Àqueles que se comportam de forma indesejada e não esperada pelo grupo, é atribuída uma punição, que se tornaria um meio de investigação das falhas das instituições sociais no processo de formação moral do indivíduo, tendo-se em vista os objetivos que se pretende alcançar com a sanção a ser imposta ao membro que rompeu a coesão moral. Nesse sentido, o corpo social repensaria ações para restabelecer a ordem, a normalidade, posto que o comportamento ofensivo aos sentimentos coletivos deve se submeter a uma resposta, a qual será tanto mais evidente e passional em sociedades mais primitivas. Nessas sociedades, a pena tem um fim em si mesma, já que é influenciada pelo instinto de vingança e por atos de defesa expressados pelos membros do corpo social.

Para além do teste feito com os macacos, análises feitas sobre o processo de evolução por que passaram as sociedades demonstram que esse produziu reflexos no aparato punitivo construído nessas comunidades. Percebe-se que o referido aparato adquiriu caracteres de política pública, consolidando-se em torno da pena o caráter da correção. O pensamento de que os direitos e interesses coletivos têm primazia sobre os individuais e de que é dever do Estado zelar por todos eles de forma centralizada por meio da formulação e execução de políticas públicas, segundo os valores e sensos de justiça, paz e igualdade entre os cidadãos, norteou as modificações ligadas à concepção da pena e da sua função na sociedade e sobre o indivíduo que a ela se submete.

Um comportamento não é crime em sua origem, mas somente a partir do momento em que se enquadra nessa categorização, transmutando-se em objeto de controle. O entendimento de que alguns comportamentos são desviantes pressupõe que se institucionalizaram padrões de condutas concomitantemente à própria formação das sociedades. Com vistas a preservar essa padronização, os mecanismos de controle social são variados, seguindo critérios como a severidade da punição a ser imposta ao desviante ou a abrangência do grupo visado. Interessa destacar que o Estado-nação moderno fundou o controle por ele exercido na monopolização do uso da violência e da vigilância à medida que garantia a pacificação interna e crescia administrativa e burocraticamente.

A manutenção da ordem pública se transformou em bem coletivo na sociedade moderna como também atribuição estruturante do Estado, implicando controle social e zelo pelo patrimônio e pela integridade do cidadão. Diferentes tipos de crimes e de comportamentos típicos de criminosos exigiram respostas do Estado distintas, variáveis conforme o contexto analisado, materializadas na sanção e no repúdio contra esses desvios de comportamento, para os quais o Direito e seus institutos converteram-se em parâmetro à atuação do Estado.

A monopolização da força física e a estabilização de órgãos estatais centrais na sociedade moderna são fenômenos que ocorreram encadeados e em paralelo à consolidação do autocontrole mental de manifestação da criminalidade, assentada na imposição de barreiras culturais e psicológicas aos ímpetos de agressividade do ser humano. Paulatinamente, o controle social e a manutenção da ordem interna deixaram de ser operacionalmente descentralizados e privados, fundados na autoridade feudal, para se tornarem centralizados, calcados na autoridade estatal. O processo civilizador, pelo exposto, foi também um processo de racionalização, pois aspectos como a imprevisibilidade e a ansiedade nas relações entre indivíduos foram substituídos pela associação mais precisa no cálculo individual acerca das conseqüências dos atos desses indivíduos à legitimidade e confiança na capacidade do Estado para prover a ordem pública e garantir a sua autoridade.

A qualificação da ordem interna como problema público exigiu que a provisão dessa fosse percebida como um bem coletivo. O Estado assumiu, então, os encargos da provisão desse bem. A segurança pública adquiriu, pois, valor social, em razão da intensificação da interdependência social e da construção de uma consciência coletiva acerca da necessidade de o Estado se responsabilizar pela sua provisão. Desenvolveram-se arranjos coletivos de âmbito nacional e compulsório[1], com aparato burocrático específico para enfrentar condutas encaradas como criminosas e passíveis, pois, de punição.




[1] Esses arranjos dizem respeito às organizações policiais, ao sistema prisional e ao sistema judicial formalizado.


Experimento com macacos: essa é para se pensar. Disponível em .Acesso em 23 mar 2010.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974. 315p.

PAIXÃO, Antônio Luiz. Recuperar ou Punir?: como o Estado trata o criminoso. 2 ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991. 87p.

RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes. A Duplicidade de Gestão no Sistema Penitenciário: Conseqüências e Alternativas Para a Formulação de Uma Política Pública.

SAPORI, Luís Flávio. Segurança Pública no Brasil: desafios e Perspectivas. 1 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2007. 206p.




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