POUSO SEM REPOUSO
Ora, uma vez, em priscas eras, deu-se que a pomba da paz, fatigada de voar e de não encontrar pouso – o planeta, nessa época, era bélico, histérico e reincidente no abuso anti-ético- pensou que, à maneira dos tempos de Noé, teria que aguardar mais de 40 dias para achar um galho, que fosse na Gália ou Ibéria. E a pomba, como se saísse de um soneto de Raimundo Correia, numa madrugada sanguínea e fresca, achou uma estátua vaga, não uma estátua vagando, mas simplesmente e verossimilmente estátua, estática, estacionada e com cara de ora-veja. Era a estátua de Astréia, “aquela deusa pelos sábios nomeada, que traz nos olhos a venda, balança numa mão e na outra a espada”, conforme um passarinho contou à pomba, pois o passarinho era versado em versos de Tomás Antonio Gonzaga.
A pomba, então, pousada no cocuruto de Astréia, parafraseando o poeta inconfidente, depenou essas questões:
- Eu vejo, na sociedade, muitos crimes e falhas; eu vejo a morosidade da Justiça, eu vejo campear a corrupção, eu vejo a vida dos pobres cada vez valendo menos, eu vejo a insegurança em toda parte e em toda parte a minha presença é nada...
Enquanto piava e clamava, a pomba não notava que a deusa não lhe ouvia com gosto, enrugava o rosto, e ia fechando a cara. Mas a pomba continuava:
- Eu não vejo a honra, eu não vejo a honestidade, eu não vejo a ética, eu só vejo egoísmo, eu só vejo consumismo, eu só vejo a baderna dos arrivistas e o histerismo sensacionalista! Será que não pode haver Direito que te mova a indicar os culpados? Será que não existem provas para cessar toda essa espúria afronta que a mais murcha das musas canta?
Aqui, aqui a deusa deixou escapar um suspiro. Ela já tinha ouvido algo parecido, quando o poeta Dirceu, antes ele do que eu, quis tirar o seu da reta e dedurou Tiradentes como um homem sem juízo. Astréia moveu-se um pouco, tentando sacudir a cabeça e jogar a pomba no chão. E a pomba da paz bicou outras indagações:
- Ainda não ouviste tudo, sossega, atende e me entenda, achas que perco meu tempo, meu vôo, meu insolúvel ovo de esperança? Não sabes quanto sofro por atravessar fronteiras em busca de uma paz que não seja passageira? Eu, ó cega, não tenho fortuna, só me alimento de esperas, e estou cansada de ver só prosperar a inveja e o poder do dinheiro, o tráfico de armas e drogas, o tráfico de influências, o sucesso dos aventureiros que não permitam que o ramo de oliveira se alastre pela Terra inteira...
Aqui, neste ponto, Astréia toda se altera, como se fosse assaltada por antediluviana TPM, tentação pela magistratura, mordendo seu próprio beiço, deixa o sítio em que estava, e vai vagando, sempre às cegas, empunhando sua espada cega e a balança abalada. A pomba, vendo ao longe, no Irã, uma explosão de bomba, correu para procurar um gramático para trocar o p pelo b e dar um up grade.
(Livremente inspirada na Lira XXXVIII de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, segunda parte)
uh, que crônica massa! ainda por cima com citação de marília de dirceu, livro que li no vestibular e do qual nunca me esqueci!
ResponderExcluira deusa da justiça é artemis ou astreia, estou em dúvida.
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