quarta-feira, 16 de junho de 2010

Paz e Filosofia do Direito em Kant

A filosofia jurídica kantiana propriamente dita teve seu início na Crítica da Razão prática mas é principalmente no Metafísica dos Costumes que Kant aprofunda o seu estudo jusfilosófico . Nesta obra o filósofo alemão retoma alguma conceitos já discutidos na Crítica da Razão Prática e os aprofunda. Suas principais preocupações e, por conseguinte, contribuições, são o desenvolvimento paralelo dos conceitos de Direito e moral, delimitando seus campos e traçando suas características fundamentais e a idéia da coação como nota essencial do Direito.

Kant observa na primeira parte da Metafísica dos Costumes que existe uma dupla legislação atuando sobre o homem, enquanto consciente de sua própria existência e liberdade: uma legislação interna e uma legislação externa. A primeira diz respeito à moral (ética no sentido estrito), obedecendo à lei do dever, de foro íntimo, enquanto a segunda revela-nos o Direito, com leis que visão a regulação das ações externas.

O paralelo entre moral e Direito norteia toda a obra jurídica deste autor, tendo a liberdade como ponto nodal e pano de fundo desta relação. Kant observa que o verdadeiro critério diferenciador entre moral e direito é a razão pela qual a legislação é obedecida. Afirma que a vontade jurídica é heterônima, posto que condicionada por fatores externos de exigência da mesma, enquanto que a vontade moral é autônoma, já que o móbil desta é o dever pelo dever.

Desta forma a mera concordância com a norma, independente do móbil, encontra-se no plano jurídico da legalidade, enquanto que para o plano ético exige uma concordância com valores internos independente de inclinações. RAYMOND VANCOURT, comentando a moral dentro da visão kantiana, expõe: "Pode acontecer, de fato, que as nossas ações estejam materialmente conformes com o dever, mas que nós a façamos por interesse ou inclinação: é o que se passa com o comerciante que vende ao preço justo para manter a sua clientela, ou com o homem que ajuda o seu próximo unicamente por simpatia. Comportando-se desse modo eles permanecem no plano da legalidade. Esta exige apenas que se atue de acordo com a lei, pouco importando as intenções. A moralidade exige mais: que eu me conforme com e espírito e a letra da lei, que eu me conforme a isso por respeito por ela".

Resta-nos a pergunta; por que se age por dever(moral) e conforme o dever (jurídica) e não de forma diversa? A Metafísica dos Costumes tem por objeto o estudo dos princípios "a priori" da conduta humana. Compreender as condições que estão submetidas o homem, libertas de toda mistura empírica e, dentro destas condições, a vontade, na concepção kantiana, a qual ocupa papel de destaque em sua filosofia, torna-se constituidora da ética. A vontade, para Kant, constitui a própria razão pura prática e sendo ela a mola propulsora da ética, seus princípios são erigidos à categoria do universal. Em outras palavras, a moral que estava centrada no individual e subjetivo agora com a razão torna-se universal e objetiva. Contudo, como ensina JOAQUIM SALGADO, esta ética para ser universal não pode ter a sua vontade dependente de uma matéria, precisa ser desprovida de conteúdo: "O ato moral tem de nascer da própria vontade que, concebida como desprovida de conteúdo e não se determinando por nada do exterior, mas por si mesma é vontade pura. Por isso ela mesma cria a lei a que se submete, a qual não é dada de fora por algum objeto ainda que esse seja concebido como bem supremo".

Assim, os princípios desta moral partem do próprio sujeito, sem contudo poder ser considerada subjetiva, já que não são ditados pela sensibilidade, tratam-se de conceitos derivados da vontade pura ou "a priori" da razão. Ao agir sobre tal ordem o homem cria princípios universais que devem ser seguidos por todos. Agindo eticamente o homem não age por si próprio mas por toda a humanidade. Introduz, portanto, a existência do dever como uma forma "a priori" da razão, que traduz-se no imperativo categórico traduzido por ele nos seguintes termos: "obra conforme a una máxima tal, que a la vez pueda servir de Ley universal".

Concluímos, assim, que a moral (ética no sentido estrito) kantiana é visualizada sob uma ótica puramente formal, sem prescrição de nenhum conteúdo. O dever moral é formal (dever por dever), agindo-se apenas por respeito ao dever.

Por seu turno, diferentemente da legislação moral que tem como princípio fundamental o imperativo categórico, enquanto postulado da razão pura prática, a norma jurídica tem como regra um dever exterior, império de uma autoridade investida de poder coativo.

Não podemos esquecer que para Kant tanto o Direito quanto a moral têm a sua estrutura de justificação na liberdade e que a diferença entre um e outro reside no fato de que na moral a força coativa é interna e oriunda da própria razão pura prática enquanto que no Direito é externa e visa a garantia da liberdade do outro.

Ainda respondendo a indagação anterior, Kant afirma que o dever se assenta no princípio da liberdade, sem a qual aquele não seria possível. Aduz, ainda, que o dever constitui uma vinculação humana à lei. Entrementes, age-se de acordo com a lei moral, respeitando-a, somente quando esta é fruto da própria vontade e produto da vontade pura ou da razão pura prática. Para Kant dever moral e dever jurídico não se diferenciam pela substância. Para a ação moral o homem age por dever e para o Direito conforme o dever e para ambos os casos o dever só é cumprido porque derivada da vontade como razão pura prática, sob o imperativo categórico da razão.

Retomando a doutrina do jurista alemão THOMASIUS, Kant assevera o caráter coativo do Direito e toma este como sua nota característica. Diferente de seus antecessores coloca a coação como nota essencial do Direito, trazendo-a para dentro do Direito. Por isso Kant fala mesmo de coação e não de coercibilidade. Não seria mais a faculdade de coagir quando alguém estivesse agindo contrário ao Direito, mas que em toda estrutura do Direito a coação estaria inerente, como uma malha intrínseca permeando toda a ação humana que se projetasse para o exterior, já que o Direito só cuidaria das ações exteriorizadas, projetadas para fora do ser humano (ao contrário da moral). Mais tarde se afirmaria que o Direito não cuida tão somente daquilo que se exteriorizaria, mas levaria em conta o próprio mundo da intenção.

A pergunta que se coloca agora é como a coação entraria como nota característica do Direito se o conceito de liberdade encontra-se subjacente à idéia de Direito. Kant pontua que a minha ação será justa se puder conviver com a liberdade do outro, segundo leis universais e, contrario sensu, será injusta a ação do outro que me impeça de agir desta maneira. Cria, assim, o imperativo categórico do Direito como decorrência lógica do imperativo categórico da moral: "Age externamente de tal modo que o livre uso do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal".

Destarte, tudo aquilo que exerce coação à minha ação justa constitui um obstáculo à liberdade, necessitando, assim, de uma coação contrária e justa. Demonstra-se o próprio caráter ético da coação dentro do Direito. "Além disso, a coação que o outro me exerce, contrária à minha ação justa, é um obstáculo à liberdade. O obstáculos ao obstáculo à liberdade é justo, porquanto concorda com a liberdade segundo leis universais. Assim, a coação é conforme aoDireito, ou seja, Direito e faculdade de coagir significam a mesma coisa". Compatibiliza, por conseguinte, a idéia de coação e liberdade, como sendo aquela não antagônica mas necessária mesma a idéia desta.

Na busca do conceito de Direito Kant afirma a impossibilidade de encontrá-lo pela via empírica, apenas com a observação do direito positivo. Para ele o grande erro dos juristas de até então foi a procura do conceito na manifestação doDireito, enquanto legislação positiva, quando deveriam ter ido atrás daquilo que era essencial. A procura deveria ser feita nos princípios "a priori" da razão pura prática. Para Kant são três os elementos que compõe o conceito de Direito: "em primeiro lugar, este conceito diz respeito somente à relação externa e, certamente, prática de uma pessoa com outra, na medida em que suas ações, como fatos, possam influenciar-se reciprocamente; em segundo lugar, o conceito do Direito não significa a relação do arbítrio como o desejo de outrem, portanto com a mera necessidade (bedürfnis), como nas ações benéficas ou cruéis, mas tão só com o arbítrio do outro; em terceiro lugar, nesta relação recíproca do arbítrio, ao fim de que cada qual se propõe com o objeto que quer, mas apenas pergunta-se pela forma na relação do arbítrio de ambas as partes, na medida que se considera unicamente como livre e se, com isso, ação de um poder conciliar-se com a liberdade do outro segundo uma lei universal".

Acentua-se o caráter tipicamente formal do Direito para Kant, independente de conteúdo, prescrevendo um complexo de condições através de uma liberdade formal de arbítrios, para uma possível coexistência destes próprios arbítrios.

Assevera, por fim, o seu o conceito de Direito: "O conjunto de condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio dos demais segundo uma lei universal da liberdade" e deste extrai o seu princípio universal: "Uma ação é conforme ao Direito quando permite, ou cuja máxima permite, à liberdade do arbítrio de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal".

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