quarta-feira, 28 de abril de 2010

O Reino de Tule: As Promessas (Não-Cumpridas) da Regularização Fundiária


Tales Henrique Ulhoa

Aos setenta e cinco anos, BH está aí com suas moradas verticais. Um milhão e meio de pessoas trombando, vivendo, convivendo, amando, odiando (...)
O Cruzeiro, 1972

Por que o reino de Tule?
Se é certo que a Carta Constitucional de 1988 esforçou-se em manter sintonia com a realidade da cisão das cidades decorrente da informalidade urbana, notadamente ao construir instrumentos jurídicos contrários ao espírito privatístico, sumamente patrimonialista e individualista que inspirara o então vigente Código Civil (filho pobre e distante das “grandes” codificações européias do século XIX), igualmente certo que referidos instrumentos constitucionais previstos para a regularização fundiária[1], bem como aqueles estabelecidos na Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) têm se mostrado inaptos a responderem à crescente demanda por moradias.
Nesse diapasão, eis que desponta patente a grande massa humana que, saída do campo ou de regiões urbanas outrora acessíveis (econômica e socialmente), estabelece-se no “Norte do mundo” (as grandes e médias cidades brasileiras) e lá teima em sobreviver, sujeitando-se a toda sorte de esquecimento e abandono. Eis que exsurge, assim, o “nosso reino de Tule”.
Mas não é só. Confrontada a efetividade formal dos instrumentos jurídicos que despontam na nova ordem jurídica com a realidade material da irregularidade urbana, difícil não aduzir a absoluta separação entre ambos os aspectos. Não é outro o motivo, aliás, pelo qual nos tornamos uma nação fértil em déficit e indignidade habitacional. Não se trata, com efeito, de “casos isolados”. Essa concepção somente inteligências oblíquas a tem.
O aumento da informalidade habitacional e ocupacional é exponencial. A incapacidade/falta de vontade do Poder Público em oferecer respostas efetivas e concretas ao problema, idem.
É, pois, a partir desse frontispício que nos propomos a enfrentar o problema.

Especulação e Inflexibilidade
Ilustrativamente, a área metropolitana de Belo Horizonte é de complexidade singular. Aproximadamente 500 mil pessoas (20% da população) estão em áreas irregularmente ocupadas, distribuídas em cerca de 180 vilas e favelas e 50 conjuntos habitacionais populares.[2]
Desse grande contingente, mais de 12 mil moram nas margens de ruas e avenidas que cortam a cidade, sobretudo nos principais corredores de trânsito (a exemplo do Anel Rodoviário, da Avenida Pedro II e da MG-020).
A par da desumanização que sempre acompanhou esse intenso processo de informalização urbana, há de se ressaltar o modelo privatístico que norteou a produção dos espaços urbanos (v.g., a especulação imobiliária), em flagrante divórcio das eventuais políticas econômicas.[3] O efeito, portanto, não poderia ser outro: expansão desordenada das periferias, o que promove dupla penalização à população que ali vive: ausência de oferta de serviços essenciais comezinhos (saúde, educação, crédito, saneamento, trabalho) e insegurança no tocante à posse.
Não bastasse, esse padrão excludente de desenvolvimento, planejamento e gestão das áreas urbanas, associado ao viés elitista e segregador da produção legislativa municipal[4] concorrem para a produção e perpetuação da informalidade. A uma, em função das exigências legais de formalização, o que torna referido processo dispendioso, demorado e, muitas vezes, inviável ou proveitoso aos interessados. A duas, por se tratarem, os processos de regularização fundiária, de diretivos que tendem a desconhecer e negligenciar todo e qualquer aspecto subjetivo, cultural dos assentamentos, uma vez que privilegiam tão-somente o acesso à propriedade formal, trazendo os grupos informais para o (insondável) mundo jus-urbanístico.
Afinal, a remoção das populações periféricas informais tem dado a tônica (quase exclusiva) dos processos de regularização da informalidade urbana, com toda a gama de descontentamentos e perplexidades daí decorrentes: aumento da distância em relação aos locais de trabalho (com reflexos inevitáveis nos gastos com transporte), deturpação do modelo cultural, desfiguração das raízes e vínculos sociais, ausência de infra-estrutura de serviços básicos etc. Esquecem-se (ou ignoram) os eruditos a lição de Richard Sennet, alicerçada na percepção de que, nas cidades, a vida nunca é planejada, mas vem das ruas, das pessoas.[5]
A inflexibilidade da legislação também é patente. Apenas a título de exemplo, veja-se o art. 12, III do Estatuto da Cidade. Como bem ressalva o juiz federal Edilson Pereira Nobre Júnior, “ao legitimar a associação de moradores da comunidade como substituta processual, demandou a autorização explícita dos filiados, a despeito de mencionar, sem rebuços, que a hipótese é de substituição processual e não de representação”.[6] De fato, a exigência de autorização expressa para a atuação processual dos representantes tende a inviabilizar o instituto processual, que passa a ter um sentido em si, sem qualquer instrumentalidade, razão maior do direito processual.

Calendas gregas: o que há de efetivo nos processos de regularização fundiária? Embora inove o Estatuto da Cidade no que tange aos princípios e diretrizes a serem seguidos nas políticas urbanas, o “dia D” da efetivação dos instrumentos de intervenção nos mercados de terras não aflora nunca, ficando relegados às calendas gregas.
Afinal, as gestões urbanas municipais pouco caso têm feito dos aspectos essenciais ao acesso à terra urbana, extra-formais, especialmente quando há que se observar todos os elementos ínsitos aos processos de efetivação do direito à moradia, conformadores do direito à “cidade sustentável” (acesso à moradia, ao saneamento ambiental, ao transporte e demais serviços públicos, ao trabalho e ao lazer)?
Ora, dentre as alternativas de política pública para as áreas irregularmente ocupadas pelas famílias de baixa renda não há sequer um único programa de regularização fundiária atento às diretrizes insculpidas no já não tão novo diploma legislativo.
Não obstante a Constituição da República e o Estatuto da Cidade tenham delegado ao Município o poder-dever de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade, comando a ser efetivado por intermédio do Plano Diretor a desarticulação deste é manifesta.
Dentro dessa perspectiva, tem-se que à função social da propriedade e da cidade, enquanto expressa na Carta Maior, tem sido atribuído conteúdo meramente valorativo, em que tem regulado a propriedade em abstrato, mas não fática e materialmente como o deveria.
Principalmente, a omissão de vários planos diretores em definir uma relação mais civilizada entre o poder público, o setor imobiliário e o conjunto da sociedade. Afinal, a cidade preconizada no estatuto da Cidade é inviável, a persistir a ausência de exigências de interesse coletivo às normas da produção imobiliária.
Nesse sentido, ressaltem-se três exigências: (a) conter a tendência de adensamento das construções em níveis compatíveis com a capacidade de suporte das diferentes zonas; (b) assegurar a disponibilidade de terras para habitação popular e serviços essenciais; e (c) obrigar os empreendimentos a ressarcir a coletividade dos custos de urbanização decorrentes da verticalização que produzem.[7]
Não há, por outro lado, qualquer escolha popular no processo de criação legislativa dos Planos Diretores, que, sequer, atende às exigências fundamentais do Estatuto da Cidade.
Desse modo, saliente-se a insistência em se limitar a regularização fundiária à estreiteza da legalidade,[8] em que surge inevitável abranger os processos sociais complexos, refutando-se a redução da dinâmica do direito à cidade à normalização jurídica da propriedade.
As políticas Municipais de habitação, por seu turno, parecem preocupar-se, tão-somente, com a forma de regularização do domínio do imóvel. Não se verifica a adoção de programas voltados para a afirmação social dos moradores das áreas em que se vislumbra a formalização do título jurídico formal de propriedade. Em outras palavras: outorgam-se os lotes, e são estes transferidos a seus ocupantes mediante outorga de compra e venda.
Outros aspectos negativos a desafiar os programas de regularização fundiária concernem aos condicionantes físicos e urbanísticos. Em face de muitas ocupações desatenderem aos preceitos legais dos planos diretores, no que toca aos referidos condicionantes, o número de lotes aprovados tende a ser, sempre, menor do que o número de lotes de fato existentes.
Outrossim, destaquem-se: a falta de normatização de procedimentos para regularização das edificações; a ineficácia do controle urbano que ocasiona o adensamentos e o crescimento de irregularidades; as práticas diferenciadas adotadas pelos cartórios para os mesmos procedimentos.
Evidente, assim, a permanência da exclusão nos aglomerados de favelamento e demais ocupações “irregulares” do solo urbano, realidade observada em todos os grandes e vários médios centros urbanos do Brasil. Tudo isso, como resultado do já mencionado viés patrimonialista que persiste no plano administrativo, pontuado por práticas clientelistas que destoam da sistemática preconizada pelos diplomas normativos e exigida pela necessária e inafastável natureza interativa do homem.
De fato, sobreleva garantir não só meros títulos de propriedade, como insistem os programas de regularização da informalidade, mas também permitir e assegurar a manutenção da subjetividade inerente a todas as populações – inclusive, portanto, as excluídas.
A regularização fundiária, enquanto compreendida como a mera regularização dos possuidores informais, sem embargo de sua necessidade, não é bastante para o controle efetivo do problema fundiário que assalta os nossos centros urbanos. Vale dizer, é necessária juntamente à regularização da informalidade uma regularização de oportunidades e de acesso a medidas que visem à promoção do emprego, da educação e aos serviços essenciais (saúde, transporte, saneamento, etc.).



De volta ao reino de Tule: a cidade moderna
Premido pela necessidade de acomodar mais de 180.000.000 de pessoas,[9] o Brasil convive com uma realidade dupla: a par da cidade regular, desenvolveu-se uma “cidade irregular”, como ensina Celso Fiorillo.[10]
Segundo o festejado professor paulista, essa realidade é global. Recebendo denominações diversas de acordo com a nação (barriadas no Peru, ranchos na Venezuela, bidonvilles nos países de língua francesa, ishish no Oriente Médio) esses bairros irregulares tornaram-se os principais sintomas (sem remédio) do quadro econômico do capitalismo.[11]
Em verdade, o dualismo entre a cidade (sede das classes dominantes) e campo (sede das classes subordinadas), tornou-se inevitável, agora, dentro da área urbana. Ou seja, também nas grandes cidades, marcadas pelos processos de informalização das ocupações e moradias, afirmou-se de maneira indefesa a referida contraposição. E, cruelmente, o modelo pouco a pouco irradia, com incontáveis tentáculos, a todos os territórios habitados.
Com isso, o processo de informalização passou a se auto-sustentar, na medida em que se reproduzem, dentro das áreas de ocupação informal, o padrão outrora observado apenas diante da confrontação entre o campo e a cidade: a subjugação de parte da população em relação a parcelas relativamente menores desta, do que decorre o aumento, o parcelamento e a periferização da exclusão.
Por esse motivo, há que se voltar as forças no sentido de se desconstruir a imagem da cidade moderna como espaço constituído, por um lado, de ambientes “higiênicos” e elitistas, e, por outro lado, de massas populacionais confinadas a bolsões isolados daqueles espaços.
Com efeito, resta inconteste o desafio a espertar as administrações públicas municipais, sob pena de nos remetermos, uma vez mais, à incerteza do fantástico reino de Tule, que ninguém sabe onde ficava ou se existia...




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Rafael de Oliveira. Justiça no Território Urbano.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da Cidade Comentado, 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

Pereira Júnior, Edilson Nobre. Regularização Fundiária Urbana e Rural, in Propostas da Comissão de altos Estudos da Justiça Federal, disponível no site www.jf.jus.br.

SANTORO, Paula e CYMBALISTA, Renato. Gestão Social da Valorização da Terra, in Acesso à Terra Urbanizada – Implementação de Planos Diretores e Regularização Fundiária Plena. Florianópolis: UFSC; Brasília: Ministério das Cidades, 2008.

VALLE, Maria Izabel Marques e CAMBRAIA, Maria Aparecida Seabra de Carvlaho. A Política Urbana como Política Pública e a Exigência Constitucional da Participação Popular – O Processo de Elaboração dos Planos Diretores Participativos. Anais do XV Congresso do CONPEDI, Manaus, 2006.
[1] Arts. 182 e 183.
[2] Fontes: Urbel (Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte) e IBGE – Censo de 2000.
[3] Valle, M.I.M e Cambraia, M.A.S.C. A Política Urbana como Política Pública e a Exigência Constitucional da Participação Popular.
[4] A título de ilustração, confira-se a Lei 7.166/96, que estabelece normas e condições para o parcelamento, ocupação e uso do solo urbano no município.
[5] Folha de São Paulo, p. C4, 05/12/08.
[6] Regularização Fundiária Urbana e Rural, p. 8.
[7] A lição, preciosa, é da lavra do arquiteto e urbanista Luiz Carlos Costa, 67, professor de planejamento urbano da Universidade de São Paulo.
[8] Alves, R.O. Justiça no Território Urbano, p. 3.
[9] IBGE, 2008. Projeção da População do Brasil de 1980 a 2050.
[10] Fiorillo, C.A.P. Estatuto da Cidade Comentado, p. 28.
[11] Fiorillo, C.A.P. Op. cit, p. 27-28.

Nenhum comentário:

Postar um comentário