terça-feira, 20 de abril de 2010

Paz/Guerra

Paz/Guerra

* Por Celso Lafer

A palavra guerra provém do germânico werra, que tem a acepção de discórdia, combate. Já a palavra paz se origina do latim pax, de verbo cujo particípio é pactus, donde o pacto celebrado entre os beligerantes para fazer cessar o estado de guerra. A etimologia das duas palavras explica o inter-relacionamento que permeia a dicotomia paz/guerra, na qual a guerra é o termo forte e a paz, por isso mesmo, é usualmente definida e dicionarizada como ausência de guerra.

Na análise da vida internacional, em contraste com o que ocorre no plano interno, no qual o termo forte é ordem (pois a desordem é a falta de ordem), a prevalência da guerra sobre a paz é o pressuposto do realismo político.

Este endossa a leitura de Hobbes, para quem o sistema internacional, na inexistência de um pacto dotado de poder, corresponde à anarquia do estado de natureza da guerra de todos contra todos. Na anarquia do estado de natureza a paz é vista como um precário arranjo, fruto da prudência ou do expediente. Daí a recomendação do ditado latino: "Se queres a paz, prepara-te para a guerra."

A mitologia grega registra a histórica preponderância da guerra sobre a paz.

Ares, o deus da guerra, tem assento no panteão olímpico. Já a Paz (Eirene), assim como a Justiça (Diké) e as Boas Leis (Eunomia) são divindades de menor hierarquia que integram o séquito de Afrodite.

Até o século 20 a valorização da guerra foi mais freqüente que a sua condenação. Hegel, por exemplo, contestando Kant, diz que a guerra assegura a saúde moral dos povos, que se veria afetada pela estagnação de uma paz perpétua, da mesma maneira que os ventos protegem o mar da podridão inerente às águas paradas.

A valorização da paz, cujo antecedente axiológico mais notório é o ideal messiânico elaborado pelo profetismo bíblico da conversão das espadas em arados, só se generaliza no século 20, com os movimentos pacifistas. Para isso foi determinante a inovação tecnológica que vem multiplicando, de maneira exponencial, a capacidade destrutiva das armas. É por esse motivo que a guerra deixou de ser vista como um mal aparente ou necessário, mas como um verdadeiro mal nas suas duas vertentes, para recorrer ao ensinamento de Bobbio: o mal ativo, infligido pela arrasadora destrutividade das armas de hoje, e o mal passivo, sofrido pelas vítimas da violência dos conflitos contemporâneos.

A evolução do cenário internacional pós-guerra fria e o término da lógica estratégica do equilíbrio do terror nuclear não levaram à criação das condições de uma humanidade mais pacífica. A guerra tem-se revelado, confirmando um conceito de Raymond Aron, um camaleão. Assume novas formas e complexidades próprias a cada distinta conjuntura. Tem atualmente como notas: a heterogeneidade dos conflitos que incluem guerras civis e guerras de secessão nacional com conflitos étnicos, e guerras terroristas sem protagonista estatal identificável; a pluralidade das armas; os ódios públicos seletivamente alimentados pelo fundamentalismo; o unilateralismo provocador das tensões de hegemonia e, como sempre, o tradicional jogo dos interesses do poder e da economia. Subjacente a este camaleão, no entanto, está o mal ativo e passivo. Daí a preocupação com a arrasadora violência da guerra, que desde a 1.ª Guerra Mundial inaugurou o massacre de massas que atinge crescentemente a população civil. Estima-se que nos conflitos contemporâneos, qualificados de "baixa intensidade", que infestam o Oriente Médio, a África e outras regiões do mundo, 75% a 90% das vítimas são civis.

Daí a urgência dramática da pergunta: por que a guerra, e não a paz?

As condições históricas da inserção do Brasil no mundo permitiram ao nosso país afirmar o valor da paz, consagrando-o juridicamente como diretriz da política externa desde a Constituição Republicana de 1891. Nesse sentido, pode-se dizer que, para a diplomacia brasileira, paz e guerra são, na linha de Raymond Aron, idéias reguladoras da Razão: a guerra nos lembra o que é preciso temer; a paz, o que temos o direito de almejar.

A expressão desta visão tem a sua melhor representação nos dois painéis de Portinari - Paz e Guerra - que o Brasil ofereceu à ONU e estão localizados no saguão da Assembléia-Geral. Como disse, em 1956, o então chanceler José Carlos de Macedo Soares, dar à sede da ONU esses dois painéis, que sintetizavam a vocação brasileira para a paz, carregava uma mensagem: a imagem da guerra que a ONU tem de vencer e a da paz que deve promover e realizar.

Portinari, que tinha a força estética para o monumental - e por isso foi o grande muralista latino-americano -, na representação da guerra, ciente de que as armas mudam continuamente, não se ocupou dos seus artefatos e protagonistas. Inspirou-se na simbologia dos quatro cavaleiros do Apocalipse. Fixou o sofrimento das populações civis. São as seis figuras maternas com o filho morto que lembram a Pietà e os quase 70 deslocados no mundo que têm as faces dos retirantes nordestinos. O clima da guerra emana de um azul escuro e no canto do painel se encontram três grandes felinos, de repugnante beleza, a nos advertir dos perigos do vitalismo da estetização da violência.

A matéria-prima inspiradora da representação da paz do painel de Portinari foi a memória da inocência da infância. São os meninos de Brodowski nas gangorras, um coral de crianças de todas as raças, moças que bailam e cantam. No centro do painel, duas cabras dançam. Dançam "porque a paz é um estado natural de dança na face da Terra", como escreveu Carlos Drummond de Andrade, e porque, para lembrar um poema de Mário de Andrade sobre o Brasil, "embora tão diversa a nossa vida/ Dançamos juntos no carnaval das gentes".

A mensagem dos painéis de Portinari articula, como disse o chanceler Macedo Soares, uma "força profunda" da política externa brasileira e representa, sem as seletividades da razão de Estado, das ideologias e dos fundamentalismos, o ideal de paz. Este ideal, no labirinto da convivência coletiva internacional, continua localizado, com todas as suas imperfeições, na institucionalidade da ONU e nas direções que aponta a sua Carta para lidar com a kantiana "insociável sociabilidade humana": a solução pacífica de controvérsias, os direitos humanos, o desarmamento, a cooperação para superar as assimetrias econômicas e sociais.

* Celso Lafer é professor titular da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso.

Um comentário:

  1. O artigo foi retirado do site Universia e pode ser encontrado no seguinte link: http://www.universia.com.br/materia/materia.jsp?id=6251. Trata-se de assunto bastante controvertido no meio jurídico por muitas vezes colocar em xeque a natureza jurídica e eficácia do Direito Internacional, principalmente no combate à guerra. Muitos chegam mesmo a afirmar que o Direito Internacional não se coaduna com o conceito coercitivo do próprio Direito, tão defendido por Hans Kelsen, já que não seria possível visualizar o cumprimento de normas internacionais sem um devido aparato sancionatório. É justamente por isso que a OMC optou por acabar com o infrutífero sistema de resolução de conflitos baseado no consentimento de seus membros, quando ainda era GATT, passando a adotar um método com verdadeiros resultados punitivos, baseado na retaliação e independente da vontade daquele que violou regras internacionais. O órgão de resolução de controvérsias da OMC é dito hoje o mais eficaz dentre os meios aptos a fazer imperar a ordem na arena internacional. Contudo, na seara do Direito Internacional da Guerra, ou melhor, do Direito Internacional da Paz, já que deveria ser este o seu fim último, ainda não se pode perceber uma utilização das normas internacionais de modo a fazer valer os direitos humanos e o respeito mútuo entre nações. Por enquanto, continuamos a viver na era da diplomacia e não do Direito, da ordem, da paz. Logo, fazer-se mister a reavaliação dos tratados internacionais, assim como dos organismos internacionais responsáveis por garantir a observância daqueles. E é neste diapasão que surge a necessidade de uma melhor estruturação da ONU a fim de que exerça seu real objetivo, qual seja, promover e realizar a paz, como bem disse Celso Lafer. Por fim, vale ressaltar a importância da atuação dos países no sentido de colocar em prática tais exigências de mudança, mesmo que seja de modo pontual, como o fez o Brasil. Talvez, cada uma destas isoladas demonstrações possa vir a angariar novos e novos adeptos e, com isso, transformar o quadro atual, tornando o Direito Internacional numa realidade, seja no comércio internacional seja nos conflitos armados.

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